JEANE TERRA
PREVIEW
ESCOMBROS
PELES
RESÍDUOS
CURADORIA AGNALDO FARIAS
ESCOMBROS
PELES
RESÍDUOS
CURADORIA AGNALDO FARIAS
Fiandeiras
Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam.
(Clarice Lispector)
No difícil jogo de articular arte contemporânea e obras clássicas da pintura, a jovem artista Gabriela Noujaim conseguiu se posicionar. Com o vídeo “Fiandeiras” (2013), a partir do quadro As Fiandeiras, do espanhol Diego Velásquez (1599-1660), a artista simula uma cena ficcional instalada no salão nobre do Parque Lage. O espaço, perfeito para realização do vídeo, oferece iluminação e dimensões necessárias para que a artista desenvolva sua criação. Uma roca de fiar, uma tela ao fundo onde são feitas projeções, valsas tocando – eis os elementos que Gabriela usou para contracenar com seus personagens: um casal dançando, um homem fiando e um anjo.
Para a execução da obra As Fiandeiras, Velásquez dividiu o espaço cênico em diferentes planos e usou principalmente a luz para destacar os diversos elementos pictóricos. Se no primeiro plano o pintor posicionou o ateliê e as artesãs fiando a lã, é no plano superior da tela que se encontra o verdadeiro motivo da obra: uma imensa tapeçaria da fábrica espanhola Santa Izabel. Nela está representada a cena mitológica de Aracne e Athenas. Na tapeçaria, a deusa Athenas está pronta para castigar o orgulho de Aracne transformando-a em aranha, destinada a fiar para sempre.
Fiar a lã ou o algodão na roca era uma atividade destinada quase que exclusivamente às mulheres. Enquanto fiavam, desfiavam histórias, tecendo como as moiras gregas Cloto, Laquesis e Átropos que enrolavam, amarravam e cortavam o fio da vida, sorteando assim o destino dos seres humanos.
Gabriela, no vídeo, coloca também em primeiro plano a roca. Mas comete uma subversão: o artesão agora é um homem que vai se despindo aos poucos até mesmo perder a visão. Como Aracne, está destinado a fiar eternamente. A luz incide sobre ele deixando que os bailarinos ocupem a cena posterior. Usando um vestido vermelho a mulher dança valsas sem cessar, rodopiando pelo salão com seu par, indiferente ao que se passa com o homem que fia. Eles também parecem destinados a permanecer assim indefinidamente. Uma enorme saia vermelha usa também a mulher que carda a lã no quadro de Velásquez.
É bastante significativo o trabalho de interpretação da artista que subtrai elementos narrativos do quadro e traça sua própria leitura. Numa imersão, Gabriela destaca os vários símbolos e mergulha no sonho, criando seu cenário. Velásquez está presente, mas o que nos é apresentado em vídeo tem cores e luzes contemporâneas. Os anjos renascentistas que apontam para Aracne na tapeçaria, aparecem na concepção de Gabriela como um único anjo bailarino, que perpassa a cena. A música envolve como envolvem as cores e os movimentos. A linguagem visual da artista foge daquela usada pelo homem do século XVII, mas o fio que as une permeia as imagens. Onde há força transparece a delicadeza, quando o inusitado surpreende, o clássico prevalece.
O que, acima de tudo, nos encanta na obra de Gabriela Noujaim é comprovar o poder da experiência contemporânea que nos faz revisitar séculos de belas artes, que nos aproxima dos mestres e nos mostra novos caminhos para a fruição.
Isabel Sanson Portella
Doutora em História e crítica de Arte
Curadora da Galeria do Lago/Museu da República.