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sombras e transparências

SOMBRAS E TRANSPARÊNCIAS

Glória Ferreira

Sombra e transparência são as alusões de Longe dos olhos, atual individual de Jimson Vilela na Galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro.

Se a sombra tem sua história vinculada ao início da pintura, com o célebre relato de Plínio, em História Natural: a filha do poteiro, Dibutade, de Sicyone, fez o contorno no muro com a ajuda de uma vela, da sombra do perfil de seu amante que ia partir. Já a transparência, diferente da translucidez, que embora permita a passagem da luz distorce as imagens, preserva as imagens e formas transmitidas, recurso utilizado por diversos pintores. Aliás, entre os pintores admirados por Jimson, podemos citar, entre outros, Matisse, Gerhard Richter e os americanos Christopher Wool e Kerry James Marshall.

As transparências apresentadas pelo artista são compostas por três mesas, Sem título (Série Longe dos olhos) de 90x40x80 cm, uma remetendo-se à outra. Na primeira, um espelho sob o tampo reflete em outro espelho no chão, uma tira de papel que vaza do livro que está em cima da mesa. A ideia é de uma página que se prolonga ao infinito. Na segunda, em ferro e acrílico, um livro está sobre a tampa e outro numa prateleira. Da borda do primeiro sai uma folha de papel que se junta ao segundo. O tampo da terceira mesa é jateado e numa prateleira, um pouco abaixo, um livro cujos miolos se entrecruzam, com uma só capa, tal um objeto.

Os livros são a base do trabalho de Jimson e se apresentam de diferentes maneiras. A linguagem é nome, diz Derrida, e os nomes têm vida própria:

 

“Há então uma potência da linguagem, ao mesmo tempo uma dynamis, uma virtualidade envelopada, uma potencialidade que se pode ou não passar ao ato; ela é escondida, enterrada, sonolenta. Esta potencialidade é também um poder, uma eficácia própria que age por ela mesma, de modo quase autônomo, sem a iniciativa e além do controle dos sujeitos falantes.”1

 

Nos trabalhos de Jimson é o silêncio que impera, já não há leitores, mas observadores, nem a linearidade que a leitura proporciona e tampouco os livros podem ser manuseados. Projetam “seus conteúdos como externalidade pura”, afirma Liliane Benetti.2

Um conjunto de colagens, da série Unidade tripartida, faz parte da exposição. São realizadas com recortes finos do Lorem Ipsum, texto em latim usado para testes de diagramação de livros e projetos gráficos. São letras, que raramente fazem sílabas ou nomes, se contorcendo em formas sinuosas, fechadas, uma entrando dentro da outra. É uma espécie de destruição da potência da linguagem, tornando-a “sem a iniciativa e além do controle dos sujeitos falantes”, retomando Derrida.

No segundo andar da Galeria uma grande instalação, Sem título (tragédia civil), remete a Samuel Beckett, em especial ao seu livro Le dépeupleur, escrito em francês, em 1970 e traduzido para o português como O despovoador.  Uma ruma de 80 livros, em papel jornal, jogados no chão com as capas umas sobre as outras, o que não deixa de aludir às 200 pessoas no cilindro de Beckett: umas coladas ao muro, outras andando na periferia e algumas no centro procurando subir nos nichos existentes no alto das paredes. Como um “matemático e poeta”, utilizando as palavras de Edith Fournier3, o autor, tal um compositor nos propõe um cilindro completamente fechado, pleno de seres cativos, com leis rigorosas, suscitando uma multiplicidade de leituras. Jimson também se utiliza de elementos geométricos nos formatos dos livros, começando por 20x30 cm, 20x35 cm, etc., até chegar ao maior de 40x20 cm. Uma lâmpada de bulbo amarela, forte, reitera ainda mais o Despovoador, mas também remete à lâmpada do Guernica. O resto da sala fica em penumbra, longe dos olhos.

De certo modo há uma espécie de profanação quando o artista utiliza livros em branco, sem um signo da escrita, mas como objetos escultóricos. Desde os códex da Antiguidade, ou antes mesmo, a escrita tem encontrado vários e diferentes suportes. Liberar o livro de seu fundamento, que é transmitir ficções, informações e conhecimentos, é dar um passo na própria ficção estética.

 

1 Jacques Derrida. Les Yeux de la langue.. .L’abîme et le volcan. Paris: Galilée, 2012.

2 Liliane Benetti. Lê-se nas paredes o peso dos corpos, 2013. In: https://www.jimsonvilela.com/textos

3 Edith Fournier. Samuel Beckett Mathématicien et poète. In: Critique, n.519-520, ago/set, 1990.

AS OBRAS

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